Habemus terrae! E agora, josé?

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Hip-Hip-Hurra! “Habemus terrae”!

Estou gritando isso! Mas qual é a origem dessa expressão? Dizem que durante as manifestações contra os Judeus no final do século XIX, o povo gritava “Hep! Hep!”, grito esse depois adotado pelas tropas de Hitler. HEP é uma sigla de “Hierosolyma Est Perdita”, ou Jerusalém está perdida. Já “hurra” deriva do eslavo “hu-rah”, que significa “ao paraíso”. Portanto, a frase significa Jerusalém está perdida e estamos a caminho do paraíso.

“Mutatis mutandi” (mudando o que deve ser mudado), será que o Amapá estava perdido e agora está a caminho do paraíso? Pelo menos na área agrária parece que sim! Ou não? Vejamos.

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Para começo de conversa, as terras sempre foram do Amapá e Roraima desde a transformação de Territórios em Estado em1988 e agora “serão” do Amapá e de Roraima de fato e de direito.

Como pode uma coisa que já era nossa agora ser nossa de novo? (rss). Eita Brasil, o país da piada pronta!

Ora, o art. 14 do ADCT da CF/88 transformou os Territórios Federais de Roraima e do Amapá em Estados Federados, mantidos seus limites geográficos e determinou no que tange à transformação e instalação as normas e critérios da criação do Estado de Rondônia.

Ou seja, os Constituintes mandaram aplicar a Lei Complementar Federal 041/1981, a qual preconizava no art. 15 que “Ficam transferidos ao Estado de Rondônia o domínio, a posse e a administração dos bens móveis e imóveis que atualmente pertencem ao Território Federal de Rondônia e os efetivamente utilizados pela Administração do Território Federal de Rondônia”.

Veja que é de uma clareza de doer os olhos! No entanto ficamos 34 anos discutindo o sexo dos anjos e o Amapá sem terras, uma situação inusitada senão curiosa: tinha governo e povo, mas não tinha território. Quer dizer, o Amapá era assim um tipo de ESTADO CIGANO!

No longo período em que as terras do Amapá estiveram sob a jurisdição do Estado do Pará houve um verdadeiro menosprezo em relação à regularização fundiária.

Na fase de Território Federal (1943 até 1988), também foram raros os procedimentos envolvendo titulação fundiária.

Com a transformação do ex-Território do Amapá em Estado, o Amapá teve plena possibilidade de concretizar a transferência de terras da União. Mas por falta de política pública de convencimento, o processo também não avançou e este procedimento se arrastou por mais de três décadas, estagnando qualquer possibilidade produtiva, principalmente pela insistência de adotar modalidade de uso integral e sustentável em quase todo seu território.

No Amapá a titularização fundiária foi extremante morosa, pois era mantida sob dependência da União que em contrapartida mantém o INCRA com uma estrutura deficitária de servidores, de logística e de matéria técnico, os quais se encontram propositalmente imersos em uma burocracia estatal com o objetivo indisfarçável de dificultar ao Estado do Amapá o acesso à documentação das 23 (vinte glebas) que serão transferidas da União.

Com a maior sinceridade, a União aplicou um grande calote fundiário no povo do Amapá, pois o legislador Constituinte primário não estabeleceu que o Estado do Amapá seria um ESTADO VIRTUAL, sem terras, pois as terras já eram de fato do Estado do Amapá desde 1988.

Essa demora no repasse de sua titularidade advém de uma política federal que tenta a todo custo impedir uma Gestão Compartilhada destas terras na fomentação de riquezas, bens de produção, qualidade de vida, cidadania, dignidade humana, fomento e exercício do direito de propriedade.

Ao longo dos anos foram criadas diversas unidades de conservação e outros institutos de proteção integral e de uso sustentável, com objetivo de atender organismos internacionais, em detrimento dos verdadeiros ocupantes, pois ao longo dos anos sequer foi efetuado um levantamento antropológico de seus ocupantes e garantido seus direitos sobre a terra.

Bem, são coisas do passado, meras reminiscências históricas, porque a Lei 14.004/2020, publicada no D.O.U. de 08.09.2020, determinou que no prazo de de 1 (um) ano, sob pena de presunção de validade, que as terras pertencentes à União compreendidas nos Estados de Roraima e do Amapá,  passam aos seus domínios, mantidos os seus atuais limites e confrontações, nos termos do transparente e mencionado art. 14 do ADCT.

E disse mais: que a falta de georreferenciamento de áreas de domínio federal, incluídos os assentamentos promovidos pela União ou pelo Incra, não constituirá impedimento para a transferência das glebas da União para os Estados de Roraima e do Amapá e deverá constar do termo de transferência, com força de escritura pública e cláusula resolutiva das áreas de interesse da União não georreferenciadas.

Será que agora vamos ter que desenhar no quadro e depois explicar o desenho para os Orgãos federais enxeridos e inertes que estavam mandando onde não deviam?

É…, a partir de 09.09.2021 os intrusos não poderão mais meter o bedelho no Amapá. Terão que pegar a boroca e “vazar”, terão que “rasgar a marva”, “cair na braquiária”…. Xispa! Agora a terra é nossa e boi de fora não lambe!

Sem dúvida que um dos grandes gargalos do desenvolvimento do Estado do Amapá é a questão da regularização fundiária. No meu ver, paralelamente a essa regularização, necessitaríamos fazer uma grande reforma agrária para viabilizar o aproveitamento das nossas terras, desenvolver o “agrobusiness”, gerar empregos e renda e verticalizar o processo desde o plantio até a industrialização dessa matéria-prima. Hoje o Amapá importa tudo porque a produção de proteínas é pífia. Um cenário triste.

Tudo bem, agora a terra é nossa!

Mas cadê a parte do governo e da mídia para discutir sobre o processo de transferência das terras da União para o Amapá e Roraima? Está todo mundo caladinho!

Entendo “data maxima venia” que é necessária a criação de um Conselho Estadual de Governança de Terras do Amapá para deliberar sobre transparência,  regimentos,  normas etc. para regular como se dará esse processo junto ao Incra,  SPU,  cartório de registro de imóveis e Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP).

De outro quadrante, seria também muito importante o TJAP criar Varas Agrárias e estruturar seus regimentos e procedimentos para lidar com a regularização fundiária.

A importância das Varas Agrárias aqui no Brasil tem sido elevada em grandes proporções porque há um crescimento substancial dos conflitos de terra e também o crescente aumento de áreas destinadas a plantações. E no Amapá a tendência, com a abertura de novas frentes agrícolas, é aumentarem os litígios possessórios e de domínio.

Essa vara agrária especializada serviria para suprir as questões de conflitos fundiários, agindo de forma célere, com julgadores preparados para enfrentar a realidade do campo, que é muito diferente da realidade cosmopolita, porque os valores culturais, patrimoniais e morais do campesino são específicos.

Assim, impõe-se uma justiça agrária com procedimentos informais, gratuitos, rápidos e ao mesmo tempo seguros, porque o Judiciário tem que ter em mente a dura realidade dos trabalhadores rurais e do empresariado do agronegócio, que dão destinação social à terra e dela retiram o alimento de cada dia da nossa mesa.

Outrossim, é bom lembrar que as terras que agora estão sob o domínio dos Estados de Roraima e do Amapá deverão ser preferencialmente utilizadas em atividades agropecuárias diversificadas, atividades de desenvolvimento sustentável, de natureza agrícola ou não e projetos de colonização e regularização fundiária.

Portanto, agora se o INCRA não expedir o termo aquisitivo, não há que se falar de transferência ou doação de terras.

Mas diante do quadro que se apresenta atualmente, peço vênia para fazer algumas indagações.

Qual ferramenta o Amapá terá para governança dessa terra?

O Amapá até hoje não conseguiu fazer regularização fundiária das unidades de conservação, de assentamentos rurais, de áreas quilombolas, das posses, das ocupações e não desmembrou as glebas da sua propriedade. Então como fará com mais esse encargo de novas terras e ainda assumir todos os processos judiciais da Justiça Federal?

O Amapá Terra está preparado para assumir a gestão dessas terras? Tem capital humano e ferramentas de gestão e de controle disponíveis?

Ou vamos continuar com os milicos do Exército para fazer todo esse trabalho?

E os recursos financeiros para esse enfrentamento, de onde virão?

Essas terras serão apenas para reconhecer posse, ocupações e desmembrar propriedades? O Estado do Amapá não pensa em alienar para arrecadar?

Enfim, os Amapaenses não podiam e nem podem ficar a contemplar a Amazônia eternamente sem acesso às suas terras, sem lhes permitir fomentar suas riquezas naturais para gerir riquezas, pois o Estado deseja sair da condição de dependente de bolsas e de contracheque para ser produtivo, como um grande corredor de exportação, com preservação ambiental dentro das condicionantes legais da lógica do desenvolvimento sustentável.

Para finalizar, antes de gritar “Hip! Hip! Hurra” de novo, eu pergunto:

E agora, José?

Autor: Adilson Garcia Professor, doutor em Direito pela PUC–SP, advogado e promotor de justiça aposentado

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